quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A (in)substância da sociedade contemporânea, ou a maldita trinca

(Elaborado na sequência de um trabalho proposto na disciplina de Português, subordinado ao tema: A importância da aparência na sociedade contemporânea)

A relação obsessivo-compulsiva que as sociedades modernas desenvolvem face à imagem, não é, convenhamos, um fenómeno característico da época contemporânea. Em verdade, ainda não eram sentidos os tumultos premonitórios da revolução francesa, e já no séc. XIII, D. Diniz, a fim de saciar a sua inquebrantável libido, se envolvia em casos demasiado voluptuosos para a contenção exigida ao emissário secular de deus na Terra.

Consumado que está o carácter não epocal da aparência, a pergunta a que urge responder é a seguinte: "Qual é, então, a origem da aparência enquanto variável sociológica?". Poderia sustentar a minha resposta em pareceres científicos, argumentando, quiçá, que uma dada inexorabilidade genética condiciona de tal forma a temperança humana que psicologicamente todos tenderíamos para a hipocrisia. Contudo considero a demonstração científica assaz insípida, visto não ser susceptível de contra-argumentação. Em conformidade, ajuizei pela enunciação da mais credível das obras no que toca a ancestralidade humana, ou seja, a Bíblia. Se dúvidas prevalecerem acerca da fidelidade factual das cenas narradas, solicito-vos que atentem na tiragem da mesma, que, como podem constatar, tem um sucesso mundial homólogo ao que o livro "Eu, Carolina" obteve em Portugal, o que, só por si, adensa a sua já elevada veracidade histórica. Remontemos aos vicejantes jardins do éden: Adão e Eva, talhados à semelhança de Deus, personificam o que de mais lapidar e impoluto se pode conceber. Eis senão quando Eva, tentada pela ardilosa cobra, trinca a maçã. Então, a luz se fez treva, e Adão e Eva foram expulsos do paraíso, já espoliados da sua candura primordial. O que tem isto que ver com a aparência? De facto, o culto da aparência mais não é do que a cruzada empreendida pelo Homem contra as compulsões naturais advenientes dessa mesma proscrição, jamais se conformando com as imperfeições que o seu próprio conceito veio a conglobar.

A título ilustrativo, debrucemo-nos em duas impulsões básicas do Homem: comer e procriar. No que ao acto de comer concerne, há muito que não é considerado um mero acto de subsistência. Na verdade, este conceito foi de tal modo mitificado que se gerou uma arte, a culinária, para dissimular este laivo de animalidade. Quanto à procriação, a fim de nos demarcarmos da irracionalidade animal, edificámos um sentimento, o amor, cuja máxima expressão material seria o acto sexual.

À luz do ideal religioso, o Homem celestial não era assaltado por sentimentos tão promíscuos como a inveja ou o ódio. Assim aflorou a hipocrisia, como método universal de resposta a todos eles.

Em função de tudo o que foi anteriormente mencionado, qualquer cidadão renega à diferença, pelo temor que esta lhe inspira. Àquele que ousar romper com a harmónica engrenagem social, ser-lhe-á imputada a culpa de violar os valores estruturais da sociedade. No fundo, será acusado de blasfemar, por evidenciar os apanágios menos abonatórios da raça humana.

Em reflexo, o Homem tende a reger-se por uma moral heterónoma, que se caracteriza pela delegação da responsabilidade das atitudes dos indivíduos em outrem. Com efeito, ao não transgredirmos o excesso de velocidade num troço rodoviário, executamo-lo, não por sensatez, mas por receio de nos afastarmos do padrão pré-institucionalizado e, consequentemente, pelo receio de sermos sancionados.

Após toda esta exposição, a pergunta que teima em irromper é "Se as sociedades criaram mecanismos que afiançam a aparência e, como efeito subsequente, a harmonia, por que é que o equilíbrio social não é incólume, à semelhança do paraíso?". A resposta reside na variável que distingue os conceitos de ser e parecer: o tempo. O ser é, por definição, perene, absoluto e indelével. Ao passo que o parecer é temporário, relativo e ilidível.

Vejamos, transpondo para a dinâmica real, a parábola do emigrante pródigo que, quando regressa à sua pátria, porfia em dialogar na língua do país para o qual emigrou. Todavia, em momentos de maior exaltação, não atípico é verificarmos que praguejam na sua língua de origem. Outro exemplo é a actual relação contenciosa encetada pela igreja católica contra Saramago. A igreja, enquanto instituição eclesiástica defensora da liberdade e fraternidade, esconjura o novo livro de Saramago, tão só pelo facto de este não se alinhar ideologicamente com os dogmas da mesma. Depreendemos, de novo, que a aparência só prevalece até que uma premissa exógena desperte a nossa alavanca nuclear, o instinto, que, fugazmente, de nós se apossa, retirando-nos o diáfano véu que nos cobre.


 

Façamos, então, um derradeiro encadeamento lógico:

A aparência é produto da religião.

A religião é o reflexo das frustrações do Homem.

A aparência é o reflexo das frustrações do Homem.


 

Posto isto, a aparência é a alfaia pelo homem escolhida, para dissimular a sua verdadeira essência. A bem dizer, é a expressão inequívoca de uma espécie que não se resigna com as características que lhe foram ofertadas pela evolução natural.

Infelizmente, não mais somos do que aqueles intelectuais que, vendo defraudadas as suas aspirações académicas, fumam cigarrilha, bebem whisky e assistem a ciclos de cinema europeu, com vista a tentar merecer tal designação.


 

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