A actual situação de crise induz na sociedade uma sede de soluções sem precedentes. Pessoas antes cúmplices, ou simplesmente resignadas, com o quadro político nacional, acham-se presentemente inconformadas e crédulas de que é imperativo mudarem a realidade, onde se inserem. Nesta época, por seu lado, os meios de comunicação, sempre atentos aos estados de espírito do seu público, apressam-se a apresentar uma miríade de conceitos pretensamente revolucionários e inovadores, que, após devidamente untados com o óleo da modernidade bafienta, são-nos oferecidos quais pedras filosofais, capazes de tudo resolver. Da convergência destas duas variáveis, uma opinião pública receptiva a novas ideias e uma comunicação social devotada à alquimia, surge a cidadania; e já que este vocábulo ter-se-á instalado no léxico português por tempo indeterminado – que isso da precariedade é lá um problema do mundo laboral, ao qual a linguística ainda parece estar imune – convém dissecá-lo e resgatar da indefinição este termo, que, por tão exposto e enunciado, nos leva a crer na sua real compreensão.
Em matéria de política, sempre que se alude à palavra cidadania, o resultado é inexorável: o debate personifica-se. Espaços outrora reservados ao confronto de ideias e ao esgrimir de argumentos são tomados de assalto por meandros biográficos dos candidatos, argutamente manejados, a fim de criar empatia com os eleitores. O caminho aos idiólatras está aberto! Então, acotovelam-se as personalidades sem sombra de ideário próprio e até aí demarcadas do exercício político. Fascina-lhes somente a projecção pessoal, ficam sideradas com o vislumbre de serem objecto de um culto nacional, em que elas, e não as ideias que corporizam, são adoradas como se de deuses se tratassem. Toda a sua argumentação é sustentada no seu percurso pessoal, o qual, por mais meritório, em nada esclarece o eleitorado acerca das convicções políticas do candidato a sufragar. Esta constatação reporta-nos para uma outra característica da cidadania, frequentemente obscurecida sob o manto da infinita bondade, mas que se manifesta em cada acção dos seguidores desta corrente: o seu amor incondicional à tecnocracia.
Não é raro escutarmos os apelos destas personalidades à unidade nacional ou ao consenso patriótico. Em suma, um governo da nação seleccionado à imagem de um conselho científico, tendo a idoneidade académica e o reconhecimento profissional como únicos e objectivos critérios de ingresso. Tudo seria ideal nesta perspectiva, se a sua análise não versasse sobre política. Por conseguinte, as figuras integrantes deste governo professariam ideias e visões divergentes, o que tornaria impossível a elaboração de um programa de governo. Esta via não só não é parte da solução, como acentua o problema: as más políticas dos anteriores executivos dariam lugar á ingovernabilidade. Claro está que este facto não configura um obstáculo na óptica da escola tecnocrática. Na verdade, a sua concepção de decisão política enquanto proposição objectiva e susceptível de avaliação científica desafia as bases do estado democrático. A democracia caracteriza-se pelo debate plural de ideias, pelas formas múltiplas de abordar uma mesma problemática e pela possibilidade de, em função do seu património teórico, os decisores políticos atingirem os objectivos por meios distintos. Tudo isto é desmerecido pela tecnocracia. A seu ver, o exercício político tem um valor unívoco, que não permite diferentes análises, sob pena de se comprometer a validade formal e académica da decisão tomada. Necessariamente, a cada conjuntura corresponde uma só medida, gerada na isenção do rigor científico, a qual só um louco teria a ousadia de contestar. Como é de prever, esta tese é totalmente falaciosa. A direita, porém, tem escudado todo o seu radicalismo ideológico sob a insuspeita capa do fatalismo científico. Perguntemo-nos: era imperativo, como o governo e o FMI advogam, que fossem os contribuintes a pagar os desvarios do jogo financeiro? Curiosamente, não. Estas medidas são produto do mais primário pensamento de direita, nem objectivo nem científico, mas sectário e radical. Porém, estes e outros conceitos são cada vez mais eficientemente vertidos na opinião pública e, com a população imbuída destas teses, surgem manifestações, em que os objectos do protesto são as instituições democráticas, ao invés dos políticos, cuja linha programática está na génese da convulsão social. O equívoco está instalado e cumprem-se os desígnios da tecnocracia. As medidas draconianas tomadas pelos executivos são acatadas com resignação cristã. Contestá-las equivale a ter a ousadia de questionar o direito da água entrar em ebulição aos 100ºC. Concluindo, a acção política, tal como a ciência, é vista como irrefutável e, nessa medida, incontestável, independentemente do impacto negativo na qualidade de vida dos cidadãos. Actualmente, aceita-se esta premissa como se de um dogma se tratasse. E esgotado que está este alvo de descontentamento, a ira gerada num cenário de crise dirige-se directamente às instituições e à classe política, na sua globalidade. Os partidos são olhados como seres intrinsecamente maus, que corrompem os indivíduos que deles fazem parte; o parlamento, um depósito de gente inútil, obtusa e ociosa, incapaz de os representar – a tecnocracia apoderou-se das ruas e tomou o povo por seu instrumento.
A actual movimentação social tem ainda outra característica rasgadamente louvada em todos os meios de comunicação: a espontaneidade. A meu ver, a espontaneidade não encerra em si nada de bom. Aliás, se me é permitida a analogia, remontemos ao séc. XIX e aos primórdios da luta operária. Um proletariado ainda com métodos de luta muito incipientes, frutos do estádio embrionário do capitalismo, onde se enquadrava, destruía os meios de produção, atacando máquinas e incendiando fábricas. Esta prática ficou conhecida por Luddismo e foi, enquanto metodologia de protesto, criticada por Marx, que a considerava totalmente inconsequente. Via-a como a expressão primária de um proletariado sem coordenação ou vanguarda, que exorcizava a sua legítima revolta através de uma acção que não lhe era útil. A análise aos contemporâneos movimentos sociais, como o 12 de Março, não é muito diferente. O descontentamento existe e compele as populações a manifestarem-se. Porém, a espontaneidade, a falta de direcção e a repulsa por qualquer forma de vanguarda votam estes movimentos á inconsequência. As manifestações e acampadas sucedem-se, a moldura humana é colossal e os índices de mobilização atingem valores estonteantes; mas passado o cenário mediático e finda a manifestação, o que resta é nada, tudo se esfuma e o destino das acções espontâneas está consumado.
Este novo fenómeno social desencadeou, mormente, dois sentimentos díspares no seio da esquerda portuguesa. Uma facção da esquerda, cativa em metodologias em alguns casos extemporâneas, mantém-se indiferente ou hostiliza aqueles que invadem o seu feudo, a sua área de influência; uma outra facção da esquerda rejubilou, cuidou que estávamos a presenciar um passo em frente na consciencialização de massas e olhou com uma esperança desmedida estes novos paradigmas. A verdade é que as conclusões devem ser diferentes e sobretudo mais cautelosas.
Pouco antes das últimas eleições legislativas, compareci numa sessão de esclarecimento político. Conversou-se, discutiu-se, elucidou-se, mas houve um problema – a sala estava quase vazia. A primeira tarefa da esquerda deve ser, pois, pôr termo ao paradoxo, traduzido numa mobilização que é avessa à consciencialização. O movimento pelo movimento é um instrumento de alienação como qualquer outro. Compete à esquerda reabilitar a confiança das populações nas instituições democráticas e afastá-las da demagogia da cidadania e dos falsos consensos. Deste modo, movimentos como o “Democracia Verdadeira, Já!”, vulgo acampada no Rossio, devem-nos inspirar alguma desconfiança. Se é certo que o programa deste movimento revela reivindicações de esquerda, designadamente o protesto contra a presença da troika, por outro lado, o título que lhe serve de mote, “Democracia Verdadeira, Já!”, instala a confusão quanto ao teor do protesto. Quem lê o título, pensa que se trata de um protesto contra o actual modelo de democracia e tal o comprova o facto de muitas das pessoas, que lá se encontravam ostentarem cartazes anti-sistema e anti-partidos. Estar ao lado deste discurso não traz dividendos à esquerda, pelo contrário, favorece o protesto inconsequente e a alienação. Em alternativa, a instauração da confiança nas instituições democráticas deverá ser conseguida através de uma projecção eficaz do trabalho realizado pelos representantes da esquerda em cargos políticos, no plano nacional ou autárquico, demonstrando que é possível os políticos respeitarem e servirem as populações. Em segundo lugar, é imperioso que a esquerda se afaste do estigma do “partido de protesto”, ao qual quer a comunicação social, quer os partidos do arco do poder, sucessivamente a vêm colando. Um partido de protesto resumir-se-ia a protestar, sem ter propostas alternativas credíveis e exequíveis. Sabemos que tal não é verdade e, por isso, devemos tentar, ainda que seja escasso o tempo de comunicação disponível, substituir as palavras de ordem por medidas alternativas, que possuímos e sabemos serem a verdadeira resposta às súplicas da população. Por último, a esquerda não deve temer a criação de clivagens na sociedade. Em certa medida, se somos de esquerda, é precisamente por acreditarmos que a força motriz da história reside na oposição de classes com interesses distintos. De facto, o actual estado de imposta harmonia social, com ecos da lógica corporativista, tenta conciliar o inconciliável e tenta criar uma unidade forjada, sem qualquer razão de ser: os interesses do trabalho e do capital nunca podem ser simultaneamente os mesmos. Apelar à resistência às medidas de austeridade não é insensato, mas racional e responsável. O que é escandalosamente incoerente é procurar unir especuladores financeiros e vítimas dessa especulação, ou formuladores das políticas de austeridade e vítimas dessas políticas.
Em suma, uma esquerda aberta aos novos desafios, uma esquerda que não subvaloriza o carácter dialéctico da História, não deve ignorar os novos estímulos provenientes da sociedade, agora contidos numa nova estética; contudo, não deve encará-los como um produto acabado e demitir-se da sua função de vanguarda, sem a qual todas estas novas acções não terão qualquer reflexo prático.
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