A cultura popular do Salazarismo estava entranhado num pressuposto ideológico: a dicotomia entre a suposta existência de um «bom povo» e um «mau povo» português. O «bom povo» estava associado ao tradicionalismo católico e ligado às práticas culturais e comportamentais defendidas pelo regime, como era o caso das Marchas Populares de Lisboa ou dos ranchos de folclore. Em contra-mão, estavam todos aqueles que pernoitavam na taberna na companhia do álcool e, particularmente, todos aqueles que estavam, de uma forma ou de outra, ligados às ideias da oposição, sobretudo, do republicanismo e do comunismo. Não obstante, neste leque ainda estavam todos aqueles que consumiam novas ideias culturais oriundas do estrangeiro, principalmente aquelas que tinham uma marca de protesto, como era o caso do Jazz* .
Portanto, a política cultural do regime passa em grande medida pela invenção de um leque de tradições, pois como deslindou Hobsbawm a «tradição inventada, que é um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceites; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado»**.
Neste campo, a «tradição inventada» mais gritado do regime, é o caso das Marchas Populares de Lisboa. Estas são uma prática cultural relativamente recente, estando na origem da actual consciência e identidade bairrista, tão "tradicional" de Lisboa. O seu mentor foi José Leitão de Barros, - um importante intelectual nos meios jornalísticos e cultural de Lisboa, bastante próximo de António Ferro -, que aceitou a ideia do directo do Parque Mayer em realizar um grande, e pioneiro, espectáculo em Lisboa. Decorria o ano de 1932! Por conseguinte, é criado um regulamento para os desfiles e é iniciado a construção de várias marchas representando os distintos bairros de Lisboa. Segundo o regime este comportamento cultural era, nada mais, do que uma tradição com raízes na idade medieval, confirmado desse modo a premissa de Hobsbawam.
Se é verdade que havia vida para além do Estado Novo, como por exemplo os passeios dos neo-realistas no Tejo, não deixa de ser verdade que havia vida no próprio Estado Novo. Isto é, mesmo num regime opressivo, violento e vigilante havia quotidiano e sociabilidade, o próprio leque cultural promovido pelo regime (marchas, ranchos, teatro etc), além da natureza política e ideológica, eram autênticos espaços de sociabilização por parte das populações locais, quer apoiantes do regime ou não. Sabendo que em história não há rupturas absolutas, havendo certas continuidades de um regime para um outro, é pertinente, ou não, afirmar que o grande legado do fascismo português ocorre no campo cultural? Como é o caso das Marchas Populares de Lisboa e a sua cultura bairrista ou mesmo de muitos ranchos.
Notas:
*Muito interessante a história do Jazz que, — ao contrário de hoje em dia que é encarado com um estilo musical de grande profissionalismo —, na altura era, efectivamente, uma música popular com uma vertente de protesto grande. Expandiu-se depois da I Guerra Mundial acabando por ser proibido e perseguido um pouco por todo o mundo, a começar nos próprios Estados Unidos, passando pelos regimes fascistas como a Alemanha Nazi, até à União Soviética. Confrontar a História Social do Jazz, Eric Hobsbawm.
**Eric Hobsbawm, A Invenção das Tradições, p. 9.Portanto, a política cultural do regime passa em grande medida pela invenção de um leque de tradições, pois como deslindou Hobsbawm a «tradição inventada, que é um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceites; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado»**.
Neste campo, a «tradição inventada» mais gritado do regime, é o caso das Marchas Populares de Lisboa. Estas são uma prática cultural relativamente recente, estando na origem da actual consciência e identidade bairrista, tão "tradicional" de Lisboa. O seu mentor foi José Leitão de Barros, - um importante intelectual nos meios jornalísticos e cultural de Lisboa, bastante próximo de António Ferro -, que aceitou a ideia do directo do Parque Mayer em realizar um grande, e pioneiro, espectáculo em Lisboa. Decorria o ano de 1932! Por conseguinte, é criado um regulamento para os desfiles e é iniciado a construção de várias marchas representando os distintos bairros de Lisboa. Segundo o regime este comportamento cultural era, nada mais, do que uma tradição com raízes na idade medieval, confirmado desse modo a premissa de Hobsbawam.
Se é verdade que havia vida para além do Estado Novo, como por exemplo os passeios dos neo-realistas no Tejo, não deixa de ser verdade que havia vida no próprio Estado Novo. Isto é, mesmo num regime opressivo, violento e vigilante havia quotidiano e sociabilidade, o próprio leque cultural promovido pelo regime (marchas, ranchos, teatro etc), além da natureza política e ideológica, eram autênticos espaços de sociabilização por parte das populações locais, quer apoiantes do regime ou não. Sabendo que em história não há rupturas absolutas, havendo certas continuidades de um regime para um outro, é pertinente, ou não, afirmar que o grande legado do fascismo português ocorre no campo cultural? Como é o caso das Marchas Populares de Lisboa e a sua cultura bairrista ou mesmo de muitos ranchos.
Notas:
*Muito interessante a história do Jazz que, — ao contrário de hoje em dia que é encarado com um estilo musical de grande profissionalismo —, na altura era, efectivamente, uma música popular com uma vertente de protesto grande. Expandiu-se depois da I Guerra Mundial acabando por ser proibido e perseguido um pouco por todo o mundo, a começar nos próprios Estados Unidos, passando pelos regimes fascistas como a Alemanha Nazi, até à União Soviética. Confrontar a História Social do Jazz, Eric Hobsbawm.
Bibliografia:
HOBSBAWM, Eric (1989). História Social do Jazz. Paz e Terra.
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (1984). A invenção das tradições. Paz e Terra.
MELO, Daniel (2001). Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958). Viseu: Instituto de Ciências Sociais.
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