Historicamente a China foi uma nação que esteve fechada do resto do mundo numa lógica do tipo feudal, tendo sido durante o século XIX forçada militarmente a submeter-se aos interesses económicos e regionais das potências capitalistas, disto é exemplo os «Tratados Desiguais», das «Guerras do Ópio», as ocupações de áreas chinesas por parte da Rússia e do Japão. Em suma, a partir, nomeadamente, de 1839 a China é um espaço de grande atracção para as potências mundiais e seus capitais. Há uma grande atracção por parte dos ocidentais sobre a China, pelo menos desde dos descobrimentos iniciados pelos portugueses. Face a esta penetração dos interesses ocidentais na China o historiador Fernand Braudel afirma que «a China só vai sair deste inferno com a constituição da China Popular, em 1949»1 , ou seja, a revolução comunista de 1949 marca uma ruptura decisiva no rumo do país. Convém, no entanto, referir que o comunismo chinês nasce apenas 28 anos antes do seu triunfo. Em 1921 é fundado o Partido Comunista Chinês (PCC) com apoio da Internacional Comunista, já havia sido proclamada uma República na China (1911) feita pelo movimento Kuomintang (que tinha apoio tanto dos EUA e da URSS), mas que na verdade nada mudou em concreto nas estruturas sócio/económicas chinesas. O PCC passa a ser um dos aliados do Kuomintang, porém, com a morte de Sun Yat-Sen, em 1925, ocorre um feroz ataque por parte do vice-presidente do Kuomintang, Tchiang Kai- Shek, contra os comunistas. Era o início da mítica «Longa Marcha» de 12 500 Quilómetros rumo ao soviete de Kiangsi no Norte do país do exército comunista e, principalmente, o início de uma guerra civil na China. A guerra civil acabaria com a derrota e fuga de Tchang Kai-Chek para a ilha da Formosa (actual Taiwan) onde estabeleceu um governo apoiado pelos EUA que durante décadas seria no plano internacional, essa pequena ilha, a representante da China na ONU. A China camponesa avança então para o desenvolvimento de um sector industrial. O seu primeiro plano quinquenal (1953-1957) obtém resultados extraordinários, ao ponto de muitos autores afirmarem que este plano obtém resultados históricos. Nos anos seguintes, de 1958 a 1959, as taxas de crescimento são de 34% e 22% por ano o que é simplesmente admirável. O desenvolvimento foi uma realidade, pela primeira vez na história da China, com a construção de estradas, da alteração da estrutura agrária, o avanço da electricidade, cuidados de saúde, e da indústria. Se no final da década de 40 a China não conseguia fabricar carros em 1962 consegue produzir a bomba atómica. O desenvolvimento industrial foi o objectivo, que traduziu acima de tudo um grande desafio para o país e sua realidade rural. Este foi correspondido com a adesão dos trabalhadores e camponeses, era a prova do prestígio que o partido tinha nas massas populares. Apesar do esforço violento pedido às massas, principalmente com o segundo plano quinquenal, estas corresponderam positivamente ao apelo, ainda que, a experiência agrícola chinesa recolha inúmeras críticas como tendo sido um verdadeiro fracasso, obrigando o governo a comprar milhares de toneladas de cereais ao exterior. É uma verdade que naquele tempo o desenvolvimento de um país estava dependente da existência de uma indústria pesada e ligeira, todavia, o sector agrícola não podia ser menosprezado.
Com a consolidação do poder do PCC na China começam certas e determinadas clivagens dentro do movimento comunista internacional em relação à actuação do comunismo chinês, que hoje ainda são actuantes. Desde da ideia lançada pela China dos «três mundos»; do «Grande Salto em Frente»; à «Revolução Cultural»; a dura crítica ao comportamento da URSS iniciado na década de 60 (ruptura sino-soviética); a crítica à crítica feita a Estaline no XX Congresso do PCUS; ao estabelecimento de laços de “amizade” entre a China e os EUA bem como a partidos duvidosos contribuiu para acentuar a dúvida dentro do movimento revolucionário internacional em relação à China, sendo esta agravada pelos trágicos acontecimentos em 1989 na Praça de Tien Amem e pela recentíssima «Economia Socialista de Mercado» (ESM). A China é responsável, independentemente da opinião que se tenha, pela dúvida e rupturas dentro do movimento comunista internacional. No caso português há exemplos disto, por exemplo durante o PREC a República Popular da China não reconhecia o PCP como o partido revolucionário, mas sim o PC (m-l), em Angola apoiou, juntamente com os EUA, a UNITA e a FNLA invés do MPLA. Consequentemente, líderes comunistas faziam críticas à China como foi o caso de Álvaro Cunhal que em 1977 afirmou que «a China é o maior país em população. É pena que os dirigentes chineses tenham imprimido à política da China esta orientação, porque podemos dizer que, se tivessem imprimido uma orientação comunistas revolucionária, fundada nos princípios do internacionalismo, podemos dizer, a revolução socialista estava ganha mundialmente»2. As relações entre o PCP e o PCC só seriam normalizadas em 1988 quando pela primeira vez uma delegação do PCC assistiu a um Congresso (XII) dos comunistas portugueses. Relembre-se que o próprio Álvaro Cunhal somente visitou a China, pela primeira vez no ano de 1986, ao contrário de Mário Soares que já o tinha sido feito em 1980.
A China, ou melhor, a República Popular da China e a sua «Economia Socialista de Mercado» é, sem dúvida, a grande questão problemática de reflexão teórica dentro do movimento comunista internacional. Se há autores marxistas, como o filosofo Domenico Losurdo, que fundamentam as suas opiniões no sentido de expor a China como capitalista no plano económico e comunista no plano político sendo a sua ordem social/económica uma espécie de Nova Política Económica (NEP) gigantesca e expandida, há por outro lado outros, como Thomas Kenny, que alertam para os perigos e contradições que há na ESM perante posições revolucionárias. Perante isto, e portanto, o movimento revolucionário internacional, sobretudo o comunista, encontra-se numa amálgama ideológica no que diz respeito à análise teórica da situação chinesa.
Ao ser verdade que a ESM é uma política económica do tipo NEP, é mais verdade que ambas nasceram em circunstâncias históricas distintas e específicas. Definitivamente, os seus resultados e aspirações são distintos. A URSS durante a NEP conseguiu, mesmo assim, estar economicamente independente da economia mundial e a duração da NEP foi curta (1921-1929). O partido soviético conservou o cuidado de vigiar atentamente a economia durante a NEP e tirar as devias alusões do avanço da NEP, ao contrário do partido chinês que permitiu o aprofundamento dos mecanismos de uma economia de mercado e a forte incursão dos interesses capitalistas dentro do seu espaço. Por último, no tempo da NEP havia, somente, uma potência socialista (URSS), o recuo era deveras vital, ao contrário no tempo da ESM onde havia espaço para aprofundar as relações entre as potências socialistas, mas contrariamente a isto a República Popular da China optou por dar um forte contributo na ofensiva ideológica contra a URSS. Todavia, é claro que há semelhanças entre a NEP e a ESM. Ambas tinham o objectivo de reforçar economicamente o país (em ambos os países havia uma forte tradição feudal e domínio dos campos), a atracção de capitais para o desenvolvimento industrial, aumentar a riqueza dos trabalhadores e, principalmente, do aparelho de Estado para que fosse possível a materialização de melhorias sociais na sociedade e garantir a sua independência face ao exterior. Por fim, ambas promoveram mecanismos económicos e políticos que facultaram uma económica de mercado e a propriedade privada, ou seja, a emergência de camadas sociais que são adversas ao projecto socialista. Não me parece de todo, e apesar de algumas semelhanças, que a ESM seja uma NEP. A ESM sofre, naturalmente, influências da NEP, mas efectivamente a comparação entre a ESM e NEP como homólogas é nada mais do que uma defesa ideológica.
Sendo um facto consumado a ampla integração da China na economia capitalista mundial, e suas instituições como é o Banco Mundial do Comércio e o FMI, é logicamente um facto inegável que há exploração do homem pelo homem, uma política assente em baixos salários e desemprego na China, pois, isto é inerente ao sistema capitalista. Não haja dúvidas neste ponto, onde há capitalismo há exploração e miséria. A lógica capitalista actuante na China não é, certamente, diferente da lógica capitalista existente em outros lugares do mundo (podendo o seu grau ser mais ou menos violento). Além deste importante facto, outros problemas surgem na China como é o aumento da corrupção, o aumento do fosso entre o partido e as camadas populares (operariado e camponeses), o fosso entre ricos e pobres e o surgimento de largas camadas da burguesia e capitalistas que são contrárias ao projecto socialista. Estes factos e forças sociais, que como afirmou um amigo meu, «nada mais fazem do que parasitar dentro do Partido», comprometem o avanço de um possível projecto revolucionário. Mesmo tendo noção desta realidade a afirmação que a República Popular da China é um regime capitalista onde o Capital é Rei e Senhor não me parece que corresponda à totalidade da verdade, pelo menos por enquanto. O que é verdade é a visão actual e difundia pelo mundo de uma China que é encarada como uma enorme linha de montagem de todos e qualquer tipo de produtos sem condições e respeito pelos trabalhadores.
Ao optar por esta trajectória a República Popular da China ficou dependente do imperialismo e do Capital, isto é, a presença de inúmeras fábricas estrangeiras na China contêm um importância estratégica para o desenvolvimento pretendido pela China. Face a este caminho escolhido pelo partido de manter o crescimento anual do país com índices altos, faz com que a pressão e a ofensiva contra uma tentativa de melhoramento da regulamentação das relações laborais sejam forte e perspicaz. Este facto conjugado com a ascensão de indivíduos deste quadrante dentro do partido faz com que até a própria manutenção da ESM esteja posta em causa num futuro. Em suma e genericamente falando, a ESM precisa da manutenção dos capitais e das empresas no país para manter o desenvolvimento do país ao ritmo desejado, porém o grande capital estrangeiro só aceita ficar no país a conviver com um partido comunista desde que esteja garantido e assegurado os vários mecanismos de economia de mercado. Procura-se encontrar um equilibro, até a China ficar forte o suficiente para avançar para o socialismo, na correlação de forças entre as forças capitalistas e as forças socialistas, no entanto, este equilibro não é definitivo.
Não obstante, há dados a reter do comportamento da China em relação ao seu progresso social. Em primeiro lugar a China é um país com uma dimensão tremenda, e apesar da sua tremenda dimensão o seu projecto, criticável ou não, conseguiu tirar mais de 600 milhões de pessoas da pobreza desde de 1981. O próprio Banco Mundial num estudo recente afirmou que a China é responsável por 67% dos resultados no que toca a eliminação da pobreza mundial nas últimas décadas. A UNICEF reconhece um enorme mérito as autoridades chinesas que conseguiram reduzir os índices de pobreza drasticamente. Em agências oficiosas e governativas dos EUA podemos recolher dados, no mínimo interessantes, que nos deixam admirados. Segundo a CIA a percentagem de pessoas a viver abaixo do linear da pobreza na China é uma das mais pequenas do mundo, cerca de 2,8% da população (os mesmos dados apontam que em Portugal e outros países ocidentais é mais de 10%, e na Índia que é o segundo país mais populoso atrás da China mas ocupará a primeira posição dentro de anos, era de cerca de 27% em 2007). Ainda nos mesmos dados podemos verificar que desde de 2007, e apesar do avanço da crise capitalista, o rendimento per capita dos chineses tem vindo a aumentar: em 2007 era de $5,700 subindo para $6,600. Em relação ao número de desempregados a China ocupa a 38ª posição da lista de países com menos desemprego, ficando os EUA na 108ª posição, numa lista de 200 países. Fazendo contas aos dados fornecidos pelo Departamento do comércio, economia e estatísticas (Censos) do EUA é possível extrair que perto de 13% da população americana é pobre. Com uma pesquisa rápida encontra-se notícias sobre a nova lei aprovada do Contrato de Trabalho na China que entrou em vigor em 2008, que coloca importantes limites as empresas estrangeiras. Há também várias notícias sobre a regulamentação e fiscalização por parte das entidades chinesas às empresas internacionais como foi o caso da libertação de 600 pessoas, entre as quais crianças, idosos e deficientes mentais que tinham sido feitos escravos numa empresa no centro do país. É inegável que foi graças ao projecto que norteou a República Popular da China que foi possível modernizar e desenvolver o país. Para terminar é importante salientar que na China vivem cerca de 1 323 591 583 indivíduos, «há demasiada gente, há sempre demasiada gente na China» é a ideia comum em relação à população chinesa, mas, a verdade é que há realmente muita gente na China, mas esta gente apesar de tudo não pára de crescer desde de 1952 (nesta data eram “só” cerca de 572 milhões), o que por si demonstra que houve condições para criar estas pessoas.
Em jeito de conclusão, não encaro a República Popular da China como a «pátria dos trabalhadores» ,para obter esse título será necessário uma forte mudança sócio/económica no país, contudo, também não encaro a China como aquele país onde todos e mais algum são fortemente explorados. Houve, e há, melhorias substâncias na China. Todavia, e dado que o objectivo final continua a ser a construção do socialismo e de uma sociedade sem exploradores e exploradores na China muito há para ser feito e melhorado. As relações económicas e de produção precisam de ser repensadas e revistas, sendo importante aumentar a produção e, consequentemente a riqueza nacional, mas esta não deve ser feita servindo os interesses do Capital (exploração dos trabalhadores), mas sim, os trabalhadores, camponeses e com uma melhor atenção à protecção e direitos no mundo do trabalho. A dinâmica de comando da ESM não pode fugir ao controlo do Estado e do partido. O aparelho partidário deve ser uma estrutura ao serviço, e em contacto com, das populações quer urbanas quer camponesas, e não um espaço de ensaio para as forças contrárias ao socialismo. A China precisa de continuar a desenvolver-se economicamente, precisa de continuar oferecer à sua população melhorias de vida e direitos vitais (como a saúde e educação) bem como continuar apostar no fabrico de bens de consumo para satisfazer as populações. Não pode, nem deve, ficar subordinada ao capital estrangeiro ou nacional. Se foi os campos que garantiram o apoio decisivo ao PCC, este não pode menosprezar os campos face ao urbano. O caminho optado pela direcção comunista Chinesa não foi o mais correcto politicamente como demonstram vários exemplos históricos, alguns citados aqui no texto. Mas, para o bem ou para o mal, foi este o escolhido e que deve ser avaliado.
A experiência fracassada na URSS deve ser levada em conta na concretização de um possível socialismo na China, ou em qualquer parte do mundo. É importante, reflectir e analisar a situação política, social e económica da China, pois, actualmente o projecto socialista e internacionalista, bem como de certa maneira o projecto capitalista, está dependente daquela realidade asiática. Seja como for, e seja o que a China for, mais dia, menos dia haverá uma ruptura definitiva nesse país, visto que, os vários interesses antagónicos que estão presentes naquele país estão a preparar o terreno para avançar. «O PCP observa o processo revolucionário na China a partir de posições de classe, apoiando nos princípios fundamentais do marxismo-leninismo e tendo em conta a experiência revolucionária própria e a experiência do movimento comunista e revolucionário mundial. E isso conduz a algumas grandes interrogações e mesmo inquietações quanto ao futuro socialista da China»3 , eu acrescentava a isto, para dissuadir quaisquer dúvidas, uma preocupação pelo facto de não ter havido ainda um alastramento à totalidade da população as melhorias substanciais que grande parte da população usufruiu com a revolução. Tendo a noção da grande dimensão daquele país, elemento que deve estar sempre presente na discução e análise sobre a China, é lógico que as melhorias de bem-estar na população não ocorrem de um dia para outro, é um processo demorado e árduo. Porém, este processo pode estar colocado em risco quando sabemos que há uma intensa luta de classes na China com um partido comunista ideologicamente deformado. É, deveras, assustador saber que há pelo menos cerca de 230 mil chineses que detêm mais do que um milhão de dólares em bens financeiros sabendo que há pelo menos 2,8% da população que vive abaixo do linear da pobreza, além de ser a prova provada que há uma forte burguesia capitalista e financeira interessada em proteger e salvaguardar o seu capital. Ou seja, a ruptura na China não será feita pacificamente, há muito em jogo (tanto no plano nacional como internacional). Resta observar o futuro para verificar o desenrolar dos acontecimentos na República Popular da China quando o momento chegar. O que não pode é continuar activa é uma enorme promiscuidade entre sectores ditos revolucionários e capitalistas que tem vindo a consolidar-se desde de 1978, quando o PCC em nome da construção do socialismo envergou por um caminho perigoso. Se é verdade que as vicissitudes do “socialismo de mercado” atraíram, principalmente, muitos intelectuais devido aos feitos que a China alcançou, é também verdade que o “socialismo de mercado” chinês carrega enormes realidades que actuam como um forte desprestígio para a causa do socialismo internacional.
Notas:
1 - Fernand Braudel, Gramática das Civilizações, p. 197.
2 - Álvaro Cunhal, Uma Política ao Serviço do Povo, Edições Avante!, 1977, p. 258.
3 - Nuno Albano, «A revolução chinesa foi há 60 anos», in O Militante, P 38.
Bibliografia:
BRAUDEL, Fernand (1989). «A China de ontem e de hoje». In Gramática das Civilizações. Editorial Teorema 197-212.
KENNY, Thomas. Lições da NEP soviética para «Economia Socialista de Mercado» da China Popular.
NUNES, Albano (2009). «A revolução chinesa foi há 60 anos», in O Militante, Nº 303, 34-39.