(Elaborado na sequência de um trabalho proposto na disciplina de Português, subordinado ao tema: A Viagem)
A viagem é o meio de conhecimento humano. Qualquer processo, por mais intelectual ou sensorial, de obtenção de conhecimento, está subordinado à viagem. Em verdade, implica que nos desvinculemos de nós, em demanda do desconhecido. A viagem assume-se, então, como uma marca essencial no desenvolvimento antropológico, traçando o limbo entre a sabedoria e a ignorância.
Mas deixemo-nos desta estética figurada, que em muito equivoca e em nada esclarece, e explicitemos a matéria em análise. Quando nos debruçamos sobre nós, em busca de uma verdade esquiva, que, decerto, nos mudará a vida e poupar-nos-á a avultada quantia que deixamos mensalmente no psicólogo, é uma viagem. Quando o João, rapazinho de escola com os sentidos efervescentes, fita o denunciado decote da rapariga que avista ao fundo da sala, é uma viagem, mais libidinosa, convenhamos, mas ainda assim uma viagem. Através dos exemplos atrás elencados, a conclusão torna-se óbvia: a viagem é comum e indissociável de toda a experiência humana, porém sê-lo-á qualitativamente?
De facto, os aspectos que mais influem na qualidade da viagem são: o tempo histórico e o conhecimento prévio. Procurarei ilustrar retrospectivamente o primeiro argumento. D. João I achava-se entediado com os milenares pleitos entre cristãos e infiéis. Estes já não constituam uma viagem, pois, de tão praticados, estavam despojados de todo o mistério. Numa época em que a Europa começava a irromper das trevas, havia um clamor velado, mas generalizado, no sentido de se descobrir, de se viajar. O rei português atende ao pedido, empreendendo uma expedição temerária, primeiro ao Norte e, de seguida, ao longo da costa africana. Por certo dirão que estou a efabular a História, as viagens de D. João I terão sido outras, conhecido que ficou pelas suas incursões aos aposentos das cortesãs do reino, deixando os marinheiros, esses sim, a braços com o impiedoso escorbuto no meio do Atlântico. Se pela provação não passou, para a posteridade fica como o mentor da expansão marítima portuguesa, já que contra as insensatas roldanas da história nada posso fazer. Votemos o rei ao seu descanso eterno e extraiamos ilações: sem dúvida, era um outro tempo. À época, os homens encontravam-se apostados em perscrutar o mais remoto detalhe de uma Terra virgem, insondada e vasta, conquanto para isso tivessem de exorcizar os seus mais profundos receios, originários de um período onde o feudo espartilhava o Homem, e o impedia de viajar - de conhecer. A questão impõe-se: Será que esta audácia, traduzida numa vontade infrene de conhecer – viajar -, hoje prevalece? A resposta contemplará o segundo argumento: o conhecimento prévio. Em verdade, naquela época, a sabedoria era escassa, residual, aliás, salvo raros pólos, poder-se-ia mesmo dizer inexistente. Ainda assim, uma fome insaciável da matéria a conhecer permitirá, a séculos de gerações diligentes, edificar o conhecimento contemporâneo. E hoje? Hoje que a informação é copiosa, as fontes são múltiplas e o conhecimento está à distância de um clique, o que sucede? Assiste-se a uma inflexão da conduta das massas, outrora tão envolvidas com parcos recursos, agora abúlicas e alheadas. A viagem foi destituída de vicissitudes e a alienação apossou-se da sociedade. Contudo, numa história recente, o artifício de uma viagem simplificada, liberta de uma deslocação física e de uma escolástica ideologicamente vincada dos meios de comunicação escrita, já inspirou muitas paixões. Quando, numa sociedade em convulsão como na década de 60, a fiel realidade das objectivas, que cobriam a Guerra do Vietname, deslindou o conceito do esforço patriótico, opondo os crimes de guerra norte-americanos à panfletária crença de uma nação na cruzada pela democracia, uma imensa torrente de pessoas encheu as avenidas. Mais elucidadas que nunca, as pessoas encontravam-se perplexas perante a possibilidade de viajarem por meio do simples acesso ao seu televisor, sendo criado um ambiente de adesão massificado. Porém, com o volver dos anos, a toada já prosaica da tecnologia de informação extinguiu o fenómeno.
Actualmente, só uma pergunta subsiste: porquê procurar conhecer - viajar? Eu próprio me debato com esta questão. Todos os dias, as estações noticiosas presenteiam-nos com a sua gama de comentadores, que gentilmente nos mastigam, digerem e defecam, até, a informação. O mais ilustre de todos eles será mesmo José Pacheco Pereira. Este vulto da verborreia portuguesa, que aborda todos os assuntos com a mesma aparente propriedade e tem a idiolatria por religião, é a personificação de uma viagem incompleta. No seu espírito há muito que operou uma revolução ideológica, que o conduziu ao neo-liberalismo, todavia, exteriormente, a sua compleição é capaz de converter o mais inveterado dos ateus socialistas, fazendo-os crer, sobretudo pela cópia fiel da barba, que Karl Marx regressou à Terra. Afastando-nos da ironia, foquemo-nos no seguinte: pode este saber sintetizado ser prolífico à sociedade? De modo algum. Ao ser sermos fiéis receptores desta palavra depurada por outrem, igualamo-nos aos seguidores de Marco Polo, que não obstante ter sido um exímio explorador, não se coibia de fantasiar aspectos das suas viagens, a fim de estas se tornarem mais sedutoras e do agrado de um enorme contingente de pessoas. Claramente isto não é viajar.
Viajar compreende focalização interna e externa. Os olhares simultâneos, para nós e para o outro, são elementos complementares, cuja desarticulação resulta numa experiência imperfeita: ou não registamos devidamente o observado durante a viagem, ou o acomodamos na mente sem submissão à nossa consciência.
Em suma, a viagem, enquanto meio de conhecimento, alavanca todo o progresso humano, sendo, porém, susceptível de factores como o tempo histórico ou o conhecimento prévio, que poderão condicionar, negativa ou positivamente, a qualidade e a celeridade do processo.
O autor deste texto gostaria, antes de terminar e em jeito de adenda, de lançar um repto a duas personalidades, que, em seguindo as minhas solicitações, certamente contribuiriam para um esclarecimento mais pleno da sociedade portuguesa. Ao professor Medina Carreira, rogo-lhe que regresse ao seu corpo. Segundo julgo saber, o professor abandonou-o logo após 1978, data em que se evadiu da pasta das finanças e rumou ao cerne do seu ser, nunca mais tendo regressado, quanto a mim devido a um narcisismo patológico, quanto ao professor devido à sua grande auto-estima. O seu corpo foi depois tomado por Nostradamus, cuja idade, infelizmente, já só lhe permite elucidar os portugueses em plano inclinado. Para o doutor José Pacheco Pereira, tenho por prece que siga a metrossexualidade dos seus pares e que, entre a hecatombe de liftings e de peelings, não tenha disponibilidade de falar à população. Sem estes dados consumados, não tenhamos dúvidas: até o mais intenso Sol de Atenas pode vir alumiar a mente mais obscura, até a mais frutuosa viagem pode ser percorrida pelo povo lusitano, que estes senhores, assim como outros, estarão, quais velhos do Restelo, a prenunciar a desventura das caravelas que seguirão para a Índia, a mais insigne das viagens nacionais.
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